Castelo de Almourol. Vila nova da Barquinha
DA ORDEM DO
TEMPLO À ORDEM DE CRISTO
Logo em 1308, pela Bula Regnans in Caelis, o Papa
se dirigiu aos soberanos europeus, denunciando os alegados crimes dos
Templários franceses e ordenando a abertura de um inquérito aos de todos os
reinos. No caso português, D. Dinis não só recebeu essa Bula, mas uma outra,
intitulada Callidi serpentis vigil, expedida a 30 de Dezembro do mesmo ano,
recomendando e pedindo mesmo a prisão dos Templários portugueses, para serem
entregues aos tribunais.
O Rei mandou-lhes de imediato instaurar um
processo judicial, mas, agindo com notável circunspecção, tudo fez com
delongas, dando tempo aos cavaleiros para prepararem a sua defesa. Nesse
período quase todos fugiram ou esconderam-se, com a sua evidente protecção.
Entretanto formou-se um tribunal, constituído pelo Bispo João de Lisboa, pelo
jurista Mestre João das Leis e pelo prior dos Fransciscanos.
Nenhum templário foi preso, mas, por sentença de
27 de Novembro de 1309, todas as propriedades e bens templários reverteram para
a Coroa, a começar pelas propriedades de Pombal, Soure, Ega e Redinha, mais
tarde Idanha-a-Velha, Salvaterra do Extremo, Rosmaninhal, etc.
Um perigo se avolumava no entanto para a Coroa
portuguesa, o de que, depois da extinção oficial da Ordem, o Papa e os Bispos
pudessem reclamar a «herança» dos seus avultados bens, o que além de tudo o
mais, pela transferência de castelos e praças fortes para fora da jurisdição
real, podia colocar em risco a paz do Reino. Foi então que D. Dinis congeminou
um entendimento com o seu genro, o Rei D. Fernando de Castela, que resultou na
Convenção de Salamanca, de 22 de Janeiro de 1310, a que aderiu pouco depois o
Rei D. Jaime II, de Aragão.
Esta aliança dos reis peninsulares relevava toda a
consideração que tinham pelos Templários. Era, no fundo, uma barreira levantada
para a sua defesa e ao mesmo tempo para garantia dos direitos dos soberanos aos
seus bens.
A inquirição ordenada por D. Dinis aos Templários
portugueses, à sua vida, aos seus costumes, às suas práticas e à sua fé,
ilibou-os totalmente. Também os nossos Prelados, reunidos, os declararam
inocentes de quaisquer crimes. E assim pouco a pouco, começaram todos a
regressar à pátria, recebendo pensões sobre os bens penhorados e sendo tratados
com respeito por toda a gente, como «antigos Templários». (quodam Milites).
A aliança dos reis peninsulares foi
extraordinariamente efectiva. Assim, quando a Ordem do Templo foi extinta, em
1312, concedendo-se muitos dos seus haveres aos Hospitalários, o Papa abriu uma
excepção em favor dos três soberanos, D. Dinis, D. Fernando e D. Jaime II,
fixando um prazo para concertar com a Santa Sé a aplicação dos bens. Para
entretanto os administrar em Portugal, o Papa nomeou o Bispo do Porto, D.
Estêvão, personalidade de ambicioso que anteriormente tivera o favor real, mas
que se mostrava agora indigno da sua confiança. Por isso o nosso monarca
rejeitou tal nomeação e, pondo os tempos entre os males, foi atrasando as
negociações.
E, quando a Bula da suspensão foi enfim publicada,
já não podia ter entre nós qualquer efeito. Os cavaleiros haviam desaparecido;
os bens estavam em poder de D. Dinis; o administrador do Papa achava-se
repudiado. Os Hospitalários não podiam ter a ousadia de chamar a si os
territórios templários (31).
Não cessaram porém as pressões da Ordem de S. João
do Hospital, de alguns Bispos e da própria Igreja de Roma, considerando-se com
direitos à herança templária. D. Dinis não esquecia que o próprio Papa João
XXII, em 1317, tinha tomado a liberdade de doar ao Cardeal Bertrand, um dos
seus prelados favoritos, nada menos do que a povoação e o castelo de Tomar, com
todas as suas rendas. No lance, como sempre habilíssimo, D. Dinis instigou o
príncipe herdeiro e alguns nobres do reino a apresentarem um protesto, decisivo
e formal. O cardeal desistiu da posse, para que estava autorizado por uma bula,
e não se falou mais nisso (32).
Por outro lado, ao defender de forma tão sábia e
eficaz os Templários em desgraça e ao conservar sem perdas, mesmo mínimas, todo
o seu património, D. Dinis não fez como os seus pares de Castela ou de Aragão,
que absorveram na Coroa todos os bens templários. Pelo contrário, tudo indica
que, desde o princípio, teve a ideia preconcebida e o propósito de restaurar de
algum modo a Ordem, que lhe prestara bons serviços e sobretudo na qual via uma força
de primeira importância para os seus planos, se é que estes não tinham uma das
suas fontes principais na própria herança espiritual da Ordem.
Não o soube a tempo Dante Alighieri, que no Canto
XIX do Paraíso, na Divina Comédia, condena duramente o de Espanha (33)
(provavelmente D. Fernando IV, de Castela e Leão) pela sua luxúria e vida de
moleza, os reis de Aragão, Sicília e Maiorca (provavelmente Jaime II e
Frederico II), cujas obras ignóbeis (...) desonraram uma raça ilustre e duas
coroas (34), e ainda o nosso D. Dinis, também por obras ignóbeis (35).
Eram os reis peninsulares que tinham assinado o
pacto de guardar os bens templários, resistindo às pressões de Clemente V para
a sua absorção no património eclesiástico, através dos Hospitalários ou dos
Bispos. Mas Dante foi duplamente injusto para com o Rei português. Não se sabe
exactamente quando concluiu, no exílio, a sua Divina Comédia. Os primeiros
Cantos, o Inferno e o Purgatório, terão sido escritos entre 1290 e 1313. O
Paraíso, muito possivelmente entre 1313 e 1317-1320, isto é, nos últimos anos
da vida do grande poeta e pensador, que morreu em 1321. O certo, contudo, é
que, se foi tão severo para com D. Dinis, associando-o a outros reis, foi por o
ter julgado, como eles, um ambicioso, que se apropriou para seu proveito dos
bens dessa Ordem pela qual tinha particular reverência.
Não teve Dante tempo para saber que, ao invés de
ter acrescentado a sua fortuna com as propriedades e tesouros templários, D.
Dinis foi o Príncipe justo e sábio (denominação pelo poeta reservada para os
habitantes, no Paraíso, do Sexto Céu ou Céu de Júpiter) que salvou a Ordem dos
Templários, que resgatou e restaurou todos os cavaleiros do país e, mais do que
isso, que preservou o seu legado, cumprindo-o em superabundância e dando-lhe um
sentido amplificante e universal ao transformá-la na Ordem de Cristo.
Sampaio Bruno tocou neste ponto, embora ao de
leve, no seu artigo D. Dinis e os Templários, postumamente inserido no livro Os
Cavaleiros do Amor, ao escrever que se Dante, tendo acabado os seus dias em
1321, conhecimento teve da nobre conduta do Rei português, houve de levar com
ele o desgosto de ter mal-entendido um benfeitor dos seus confrades (36).
Duplamente injusto, escrevemos. É que, se houve
soberano europeu do seu tempo que tivesse entendido, perfilhado e assumido o
pensamento doutrinário e poético do autor da Divina Comédia, ou que com tal
pensamento se tivesse encontrado pela convergência joanina, joaquimita e
templária, esse soberano foi como veremos D. Dinis, irmão espiritual de Dante,
seu contemporâneo, homem da mesma geração, companheiro da mesma confraria
invisível e sonhador do análogo desiderato escatológico das duas beatitudes.
D. Dinis foi contudo mais lúcido na sua visão
política, ao conceber antes no futuro, mas preparando-o, o seu Império do
Espírito Santo, do que no presente existencial e conflituoso, como
quimericamente o chegou a projectar o arrebatado Alighieri, ao ver em Henrique
VII de Luxemburgo, eleito Rei dos Romanos em 1308 e coroado Imperador em S.
João de Latrão em 1312, a cabeça carismática de um Império dentro do qual ele
próprio, o gibelino, o «branco», o adversário de Bonifácio VIII e depois de
Clemente V, não só poderia voltar à sua Florença natal de onde fora exilado
pelos «negros», como poderia (julgava) doutrinar o Imperador. Dante recebeu
Henrique VII em Vercelli e acompanhou-o a Pisa nesse mesmo ano, procurando
inspirar-lhe o projecto de uma soberania terrena de Deus-Espírito na Verdade,
na Fraternidade e no Amor, enquanto para o Sumo Pontífice ficaria reservada a
soberania no espiritual, isto é, para um a representação da primeira, para o
outro a da segunda beatitude.
Mas este Imperador tão frágil, tão precário, no
qual tão excessivamente investira o seu sonho o poeta, veio a morrer pouco
depois, a 24 de Agosto de 1313 em Buoncovento, perto de Siena, dessa Siena
grata onde o imortal florentino passou, desterrado, os últimos anos da sua
existência, escrevendo o Paraíso e as Questões da Água e da Terra.
Pouco depois, em Portugal, D. Dinis preparava
discretamente a sua jogada. Com procuração sua e instruções esplícitas, partiu
para Avinhão uma embaixada portuguesa, constituída por João Lourenço, cavaleiro
de Monsaraz e Pedro Peres, Cónego de Coimbra, encarregados de expor ao Papa João
XXII (que em 1316 tinha sucedido a Clemente V) as razões por que o nosso Rei
tinha conservado na Coroa as propriedades e os bens templários e porque,
atendendo «às graves injúrias, inúmeros danos e outros diferentes e enormes
males, os quais tinham feito e não cessavam de fazer os sarracenos, inimigos
pérfidos da Fé» (37), sarracenos que vizinhavam no sul (os Califados de Sevilha
e Córdova), era necessário criar uma milícia capaz de lhes fazer frente, para
tal usando os haveres e rendimentos templários e aproveitando para sua sede o
lugar muito fortificável de Castro Marim, nas margens do Guadiana, fronteiro à
Espanha muçulmana.
Os embaixadores expuseram de viva voz ao Papa esta
pretensão, sublinhando que no castelo de Castro Marim poderia sediar uma santa
milícia cujos cavaleiros e professos, deixando as vaidades do mundo e incitados
com zelo de verdadeira Fé, prestariam grandes serviços ao nome de Deus e
desalojariam os sarracenos, que tanto dano causavam ao seu rei e reino (38).
Está-se a ver o alcance do ardil de D. Dinis.
Perante a forma como era apresentada a ameaça muçulmana, tanto mais que o
poderio da Espanha moura era ainda uma realidade e o Algarve, só recentemente
reconquistado para a fé cristã, corria sempre o perigo de uma invasão, João XXII,
concordou com a proposta e, pela Bula Ad ea exquibus cultus augeatur divinus,
dada em Avinhão a 14 de Março de 1319, proclamou o estabelecimento de uma nova
Ordem de Cavalaria, a Ordem da Milícia de Jesus Cristo («Ordo Militiae Jesu
Christi), sendo os seus cavaleiros denominados Cavaleiros de Cristo (Milites
Christi).
A sede seria em Castro Marim, devendo os
cavaleiros seguir a regra cisterciense, tendo como superior espiritual o Abade
de Alcobaça, que poderia quando e como quisesse inspeccionar o chefe e membros
da Ordem. Os Mestres deveriam prestar juramento e fidelidade ao Rei, não
podendo, eles ou os cavaleiros, alienar os bens da Ordem. Por outro lado a
citada bula outorgava, doava e unia, incorporava, anexava e aplicava para todo
o sempre à dita Ordem de Jesus Cristo: Tomar, Castelo Branco, Almourol e todos
os outros castelos, fortalezas e outros bens móveis e de raiz, homens, etc.,
etc., que a Ordem do Templo tinha e havia e devia ter nos ditos reinos de
Portugal e Algarves (39).
Era afinal a restauração da Ordem do Templo, tanto
mais que todos os antigos templários se incorporaram na nova ou renovada
Milícia, incluindo o seu último Mestre, D. Vasco Fernandes. E tal foram o
desinteresse e rectidão demonstrados por D. Dinis nesta ocasião, sublinhou o historiador
alemão Henrique Schaeffer, que a 26 de Novembro daquele mesmo ano, não só
mandou entregar à Ordem de Cristo todos os antigos domínios templários, como
também mandou restituir nos cavaleiros de Cristo os rendimentos cobrados pelos
almoxarifes régios nos bens dos Templários desde a sua extinção (40). Eis o que
indica eloquentemente a disposição e os planos, do Rei para a nova Ordem.
Foi a 5 de Maio de 1319 que, dando quase imediato
cumprimento à bula do Papa (que ele praticamente tinha ditado), foi celebrada
em Santarém a instituição da nova Milícia, tendo como Mestre, nomeado por João
XXII sob proposta de D. Dinis, o também Mestre da Ordem de Avis, D. Gil
Martins, homem sobre cuja pureza de vida, valor de pessoa, inteireza de Fé e de
outros merecimentos de sua natural bondade tinha o Papa louváveis testemunhos
(41).
Inaugurava-se deste modo a aproximação entre as
duas Ordens de Cristo e de Avis, seguindo esta, aliás, a mesma regra de Cister,
colaboração que viria a atingir o seu ponto mais alto no tempo de D. João I,
Mestre de Avis, e bem assim em vida dos seus sucessores, até D. Manuel I. Só
desta vez foi o Mestre de Cristo nomeado pelo Papa, porque a partir da morte de
D. Gil Martins (que sucedeu pouco depois, em 13 de Novembro de 1321), passaria
a ser eleito pelos cavaleiros.
Naquele dia 5 de Maio de 1319, em Santarém, com
grande pompa, o próprio Rei recebeu pessoalmente o juramento do Mestre de
Cristo, D. Gil Martins, que ali foi armado cavaleiro da nova Ordem.
Foi a 11 de Junho de 1321 que se realizou o seu
primeiro capítulo, no qual se lhe arrolaram todos os bens (10 cidades e 46
vilas e coutos) e se lhe fixou em 84 o número dos membros, dos quais 69 seriam
Freires Cavaleiros, 9 seriam Freires Clérigos e 6 Freires, Serventes ou
Sargentos.
Um pequeno grupo, como se vê. Grupo de
Freires-Cavaleiros que nunca foi muito maior, visto que no tempo do mestrado do
Infante D. Henrique apenas subiria para 100. Mas um corpo de elite, uma
aristocracia da coragem, da dedicação total a uma causa e sobretudo do
espírito, na continuidade do antigo pensamento templário, mas renovando-se com
a influência decisiva de D. Dinis, não podendo esquecer-se que, durante os 11
anos de dormência da Ordem do Templo em Portugal (1308-1319), o Rei e a Rainha
lançaram e desenvolveram o Culto e as Festas aristocráticas e populares do
Esprito Santo, com a coroação simbólica de um Imperador-homem pobre ou de um
Imperador-menino, de um Veltro representante do Evangelho Eterno. Ambas as
iniciativas são indissociáveis e complementares, tanto assim que, como já
apontámos, nas naus de descoberta e de povoação, capitaneadas por Cavaleiros ou
Comendadores de Cristo, as Festas do Espírito Santo eram instauradas
Antonio Quadros
(in ob. cit., pp. 125-131).
Notas:
(31) H. Schaeffer, História de Portugal, I Vol., ob. cit., p. 135. Estes elementos foram colhidos principalmente, não só na História de Shaeffer, cap. Os Templários e a Ordem de Cristo, abonando-se principalmente da Monarquia Lusitana, mas também nos mencionados livros de Vieira Guimarães e A. Vieira d'Areia, respectivamente sobre A Ordem de Christo e O Processo dos Templários.
(32) H. Shaeffer, ob. cit., p. 316.
(33) Dante, Divina Comédia, ob. cit., Paraíso, 19, 124.
(34) Ibid., 130 e 136.
(35) Ibid., 139.
(36) Sampaio Bruno, D. Dinis e os Templários, A Águia, n.º 40, Abril de 1915, in Os Cavaleiros do Amor, Guimarães Ed., Lisboa, 1960. p. 169.
(37) Vieira Guimarães, A Ordem de Christo, ob. cit., p. 58.
(38) Ibid.
(39) Ibid., p. 59.
(40) H. Shaeffer, História de Portugal, ob. cit., p. 318.
(41) Da Bula Ad ea exquibus, cit. por Vieira Guimarães, A Ordem de Christo, ob. cit., p. 559.
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