Há 37 anos, o Chiado ardia num incêndio que mudou Lisboa
A 25 de agosto de 1988, as chamas devoraram vários edifícios do Chiado e deixaram em ruínas aquela zona histórica de Lisboa em menos de cinco horas. Às duas vítimas mortais e dezenas de feridos juntou-se o desespero de quem perdeu o emprego ou o investimento de uma vida. Nos 37 anos deste desastre, assinalamos a data com imagens únicas do arquivo da RTP e ainda fotografias, jornais da época e testemunhos únicos de quem lá esteve.
Aquele dia ficou para a história
da capital e do país. Definida pelos jornais e na televisão como “a pior
tragédia em Lisboa desde o terramoto de 1755”, a ocorrer precisamente às portas
da Baixa Pombalina, mas também recordada como o primeiro grande acontecimento
mediático, com repórteres in loco, onde tudo aconteceu.
Não se falava de outra coisa
naquele final de verão de 1988. O incêndio devorou grande parte dos edifícios –
um total de 18 - na ruas Garrett, do Carmo, e Nova do Almada, deixando cinco
famílias e outras 20 pessoas sem casa. Era já na altura uma zona pouco
habitada, dedicada sobretudo ao comércio e serviços.
Duas pessoas morreram, um bombeiro
e um morador. Pelo menos 50 pessoas ficaram feridas. Às perdas e danos humanos
juntou-se também a perda do património histórico e arquitetónico, desde logo
várias lojas centenárias e edifícios singulares, a começar logo pelos Armazéns
do Grandella, onde o incêndio deflagrou.
O primeiro alarme é dado às 5h19
e, nas horas seguintes, o fogo chega aos Armazéns do Chiado, numa trágica
marcha até novos edifícios, chegando ao edifício Eduardo Martins, do outro lado
da rua, perto das 7h00. A madeira de que eram constituídos os imóveis, em
alguns casos já apodrecida, serviu de fornalha para a propagação veloz do fogo.
As primeiras imagens do local,
retiradas do arquivo da RTP - na altura, a única emissora de televisão em
Portugal - mostram vários edifícios em chamas, na interseção entre a Rua do
Carmo e a Rua Garrett.
Em cinco horas, as chamas
progrediram ao longo dos Armazéns do Chiado e ameaçaram depois chegar à escola
Veiga Beirão, bem como vários outros edifícios da Rua Nova do Almada,
nomeadamente o Tribunal da Boa Hora. Do interior do edifício do estabelecimento
escolar, que chegou a ser visado pelo incêndio, os repórteres recolheram várias
imagens onde se vê o trabalho dos bombeiros que tentam com os seus meios evitar
o avanço das chamas.
Com a aproximação do fogo, os
comerciantes e donos de estabelecimentos tentavam salvar o que conseguiam.
Roupas e quadros, cada um tenta retirar o que pode. Muitos já não conseguem ir
a tempo.00:00/03:05
Ao longo do dia são vários os
repórteres da RTP que estão no local para relatar a evolução dos
acontecimentos. Mário Crespo, Manolo Bello, Cândido Azevedo são alguns dos
rostos dos jornalistas que ficaram associados a este dia na memória dos
portugueses.
Há mesmo um registo em vídeo em
que um dos jornalistas, Mário Crespo, ouve o testemunho de outro colega de
profissão, também em trabalho para a televisão pública, depois de este ter
estado mesmo junto à zona de fogo.
Naquela altura, os próprios
colocavam-se em risco ao estar no local onde as chamas ainda consumiam os
edifícios. Afinal, havia risco de explosão de bilhas de gás e canalizações, que
projetavam os escombros dos edifícios para o exterior. O fumo denso nas ruas
quase não deixa ver os estragos que o fogo irá deixar para trás.
Já à hora de almoço, é possível
ver o que resta dos armazéns e até mesmo entrar no local de onde só restam os
escombros de vários prédios centenário. “Com a esperança que não nos caia uma
viga em cima”, acrescenta o repórter Manolo Bello, ao pisar o chão de um antigo
edifício de que já só resta madeira queimada.
Ao percorrer as ruas de difícil
acesso, deparam-se com o pouco que resta da Casa Batalha, loja centenária de
Lisboa situada junto à calçada Nova de São Francisco.
O choque de ver locais míticos consumidos pelas chamas vai repetir-se ao longo
do dia. O arquivo histórico da editora discográfica Valentim de Carvalho, com
elementos únicos da história da música portuguesa, um espólio que fica
completamente destruído. A pastelaria Ferrari, a perfumaria da Moda e as lojas
Custódio Cardoso Pereira e Martins e Costa foram outros tesouros que ficaram
completamente destruídos.
Outros estabelecimentos comerciais
e escritórios - que já sofriam com o decréscimo de compras e clientela, fruto
do surgimento dos primeiros centros comerciais noutras zonas da cidade -, ficam
completamente destruídos. O futuro é incerto para mais de duas mil pessoas, que
ficam sem o seu emprego naquele incêndio.
Ainda que em menor número, há também vários desalojados, mais concretaente
cinco famílias. Alguns destes moradores conseguiram escapar por pouco, tendo-se
esforçado por trazer para a rua o máximo possível de bens.
Nas imagens recolhidas do arquivo, é possível ver vários desalojados nas ruas com os haveres que conseguiram retirar de casa. A reportagem mostra ainda a ajuda por parte da Cruz Vermelha Portuguesa na distribuição de alimentação pelos bombeiros./01:
Até hoje não houve quaisquer explicações para a origem deste incêndio, tendo a
investigação sido encerrada em julho de 1992. Certo é que os eventos de 25 de
agosto de 1988 levaram à reflexão de entidades sobre o combate aos fogos
urbanos.
Mais de 1100 bombeiros
participaram nas operações de combate às chamas, vindos de várias corporações
nos arredores de Lisboa. Também o canhão de água do aeroporto de Lisboa foi
decisivo no combate às chamas.
Participaram ainda 191 viaturas e foram disponibilizados meios aéreos por parte da Força Aérea, mas a sua utilização foi desaconselhada pelas autoridades, de forma a evitar derrocadas das estruturas que se tinham mantido hirtas depois do fogo.0/02
Foram várias as críticas apontadas à Câmara Municipal de Lisboa, à altura
liderada por Nuno Krus Abecassis, pela falta de um plano de assistência nos
casos de catástrofe, a ausência de estudos de planeamento urbanístico e ainda o
mobiliário urbano existente na rua do Carmo, que era já na época uma zona
exclusivamente pedonal, e onde tinham sido colocados há pouco tempo vários
canteiros de betão com flores e bancos para usufruto de turistas e visitantes.
Esses equipamentos ocupavam uma das “faixas” de circulação, pelo que impediram
a intervenção mais rápida por parte dos bombeiros e a chegada e aproximação de
mais autotanques.
“Com aquelas construções no meio
da rua era fácil combater um incêndio num caixote de lixo, mas nunca num
prédio”, pode ler-se numa das páginas dedicadas ao tema na edição de 26 de
agosto de 1988 do Correio da Manhã, que cita o depoimento de um
bombeiro no local.
A mesma edição conta as
dificuldades de comunicação durante as operações de combate. “Cá de baixo, os
graduados orientavam as operações sem outro meio de recurso que não os gritos.
De facto eram poucas as corporações que possuíam meios rádio ou por fio para
orientar os homens que se empoleiravam no alto das escadas”, refere a
reportagem do mesmo jornal.
“Esse dia
foi uma assombração”
Trinta anos depois, Mário Aleixo, hoje jornalista da RTP, então repórter
no Correio da Manhã, recorda aquele dia. “Na Rua Nova do Almada
cruzei-me com um homem dos seus 50 e tal anos que chorava compulsivamente
encostado à umbreira de um prédio, onde horas antes estava instalada a Casa
Batalha (…). Tentei convencê-lo que o mais importante era ele estar vivo mas
respondeu-me que tinha perdido ali uma vida de trabalho”, lembra.
“Balbúrdia total. Correrias
intermináveis. A cada esquina um drama humano daqueles que viam queimado o seu
negócio ou emprego” é a primeira impressão sobre aquele dia do jornalista, que
viajou de helicóptero naquele mesmo dia sobre a zona ardida para ter uma “visão
aterradora de um quarteirão esburacado, todo consumido pelas chamas”.
Quem também se lembra com clareza
deste dia é João Ramos de Almeida, na altura jornalista do Diário de
Lisboa. “Esse dia foi uma assombração. Eu tinha começado a trabalhar como
jornalista há coisa de ano e meio, no jornal Diário de Lisboa, ao Bairro
Alto”, recorda num depoimento enviado à RTP.
Por obra do acaso, foi naquele dia
25 de agosto que o repórter “tinha decidido passar a andar sempre com a máquina
fotográfica”. Chegado ao incêndio vê o que as suas fotos retratam: “Pessoas
aglomeradas na rua, à janela, (…) absortas no espanto”.
A 25 de
agosto de 1988, Lisboa acordava para um incêndio trágico que destruía edifícios
míticos da capital. João Ramos de Almeida, na altura jornalista do Diário
de Lisboa, recolheu imagens que aqui expomos, três décadas depois.
“O Chiado estava todo desfeito. Os bombeiros atuavam sem contemplações e sem
pensar que era o Chiado que ardia. Acho que eles próprios estavam também
espantados e baralhados”, resume João Ramos de Almeida, que ainda foi a tempo
de contribuir com as suas fotos para o jornal daquele dia, uma vez que se
tratava de um diário vespertino. A fotografia de primeira página viria a ser
sua, com uma imagem do edifício Eduardo Martins em chamas.
Foram necessárias apenas cinco
horas para apagar do mapa uma zona histórica, mas só dois meses depois do
incêndio foram removidos todos os escombros, e só no final da década de 90 é
que o espaço ficou totalmente recuperado. A reconstrução ficou a cargo do
arquiteto Álvaro Siza Vieira, que viria a vencer um prémio Pritzker – galardão
equiparado aos Óscares da arquitetura – pelo trabalho desenvolvido no Chiado.
Nas maquetas de reconversão da
zona, que passou a usufruir também naquela década de uma estação de
metropolitano desde 1998, o arquiteto Siza Vieira tentou respeitar o traçado
daquele eixo de ligação entre a Baixa Pombalina e o Bairro Alto.
Algumas destas características
gerais bem como as fachadas do século XIX, manter-se-iam, tendo em conta a
memória e a “importância no imaginário da população” de todo aquele espaço,
refere o arquiteto numa entrevista à RTP, datada de 1994.
Siza Vieira destacava, no entanto,
uma "certa decadência" que existia no espaço à altura do incêndio e a
"polémica" entre os arquitetos sobre o que fazer com a reconstrução
do Chiado.
"Esta encomenda, como sucederia com qualquer pessoa, assustou-me um pouco. Sabia que ia haver muitas dificuldades", admitiu o arquiteto. Mas para Siza Vieira, havia que respeitar a tipologia de construção dos edifícios deixada após o terramoto de 1 de novembro de 1755 no novo desenho da cidade.
A recuperação total só aconteceria
em 1999, no final de uma década marcada por eventos importantes que voltaram a
dar vida àquela zona da cidade, desde logo em 1994, quando Lisboa foi Capital
Europeia da Cultura, isto numa altura em que outros pontos da urbe ganhavam
ainda mais centros comerciais a competir com aquela zona nobre.
Hoje em dia, como noutros tempos,
o Chiado é um ponto turístico obrigatório para quem visita Lisboa, lugar
literário mencionado em obras de grandes autores como Eça de Queiroz ou
Fernando Pessoa, entre tantos outros.
Aos esforços no trabalho de
reconstrução e de tentativa de devolver a mística ao Chiado, juntam-se as
aprendizagens e lições decisivas que ficaram daquele dia. No livro "Incêndio
do Chiado: Um Olhar Técnico-Operacional", da autoria de Carlos Silva e
Pedro J. Matias Pedro, editado pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Regimento
de Sapadores Bombeiros em 2016, reconhece-se precisamente esse papel a este
desastre.
"Este incêndio veio
estabelecer um virar de pagina no que toca ao risco de incêndios em zonas da
cidade altamente criticas e vulneráveis. De uma forma generalizada, deste
evento resultou uma consciencialização para o problema do risco de incendio em
zonas historicas da cidade", dando azo ao "debate" de caráter
científico e regulamentar e a novas regras de segurança.
Outro elemento de aprendizagem foi
o da colaboração e cooperação entre várias entidades e corporações de
bombeiros. No Chiado estiveram mais de 60 corporações de várias zonas nos
arredores de Lisboa, que combateram e controlaram o fogo em conjunto da melhor
forma possível, contudo "espontânea"
"Apesar da solidariedade demonstrada e dos efeitos positivos dessa cooperação espontânea, que foi na altura bastante importante, hoje sabe-se que é decisivo no sucesso das operações de socorro, em particular das mais complexas, o planeamento conjunto entre os vários agentes que previsivelmente terão que intervir", sublinham os autores.
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